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terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Documentário investiga altas taxas de suicídio em Itacuruba, no Sertão de Pernambuco

Na década de 1980, com a conclusão das obras da Usina Hidrelétrica de Itaparica (depois rebatizada de Luiz Gonzaga), a cidade de Itacuruba, a 466 quilômetros do Recife, foi completamente destruída e inundada. Desolados com a mudança, os moradores deixaram os escombros e seguiram em procissão, entre choros e rezas, para o novo local de moradia. Esse episódio é encarado como principal fator para o município apresentar, hoje, índice de suicídio dez vezes maior do que a média nacional, segundo pesquisa do Conselho Regional de Medicina de Pernambuco.
Intrigada pela depressão coletiva incrustada no Sertão do São Francisco, a cineasta e psicanalista Isabela Cribari lançou mão da sétima arte para chamar atenção para o grave problema de saúde pública. Em festivais de cinema e eventos médicos, ela exibe o documentário de curta-metragem De profundis, mesmo título do livro de Oscar Wilde, onde se lê: “Por detrás da alegria e do riso, pode haver uma natureza vulgar, dura e insensível. Mas por detrás do sofrimento, há sempre sofrimento. Ao contrário do prazer, a dor não usa máscara”.

Como a recorrência de transtornos mentais em Itacuruba chamou sua atenção? O que buscou captar com o documentário?
Sou psicanalista e documentarista. Quando li reportagens sobre o assunto, aquilo me atraiu pelas duas vias. A imprensa falava da depressão como sintoma da cidade em decorrência da mudança de lugar, mas eu quis saber mais sobre a pesquisa do Cremepe, fonte dos jornalistas. No município havia um índice de suicídio dez vezes maior do que a média nacional. Segundo o levantamento, em 70% das famílias de Itacuruba, alguém já atentou contra a própria vida. Confrontei esses dados com indicadores nacionais e eles não batiam. Conversei com colegas da área e ninguém sabia a respeito. Então quis fazer uma pesquisa qualitativa para se referir a essa outra, quantitativa, mas para evitar a confusão e a burocracia de se fazer isso na academia, escolhi usar a via da arte para retratar a situação com liberdade e velocidade.

Houve resistência por parte dos moradores para contar as histórias?
Pouco tempo antes, uma rede de televisão havia gravado uma matéria bastante melodramática. As pessoas estavam magoadas. O sofrimento e a dor não são naturalmente expostos com facilidade. A população estava há 25 anos com uma dor e, de repente, isso foi mostrado explicitamente. Todos estavam receosos, negaram o problema e apenas exaltaram o quanto a cidade estava linda. Mas reconheci nas pessoas uma impregnação de medicação. Muitos tomavam psicofármacos.

Quais foram as estratégias de aproximação?
Exibi o filme Cinema, aspirinas e urubus, cujo enredo narra a tentativa de um alemão de vender aspirinas da Bayer no Sertão. Debatemos a ligação da indústria farmacêutica com a depressão, a necessidade de usar a medicação como instrumento e não tratamento. Mais tarde, os moradores começaram a vir falar comigo, individualmente, para contar vários casos de suicídio. Eram relatos tanto dos mais velhos, habitantes da cidade "antiga", quanto dos jovens que não tiveram contato com a mudança. Também promovemos oficina de cinema. Usando celulares, eles fizeram vídeos sobre o observatório de estrelas do município, sobre o alcoolismo e a respeito da mudança da cidade velha para a nova. A partir desses filmes, entrei no universo deles
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Como o povo reagiu ao remexer no passado traumático?
Quando ninguém queria falar, exibimos em praça pública imagens de arquivo fortíssimas, de pessoas desenterrando seus mortos, colocando ossos em caixas para a água não levar. Na gravação antiga, alguns defendiam a mudança como oportunidade para desenvolver a região. Uma das cenas é a procissão dos moradores andando a pé da cidade velha para a nova, rezando e chorando, pois não queriam se mudar. No dia da exibição, com a praça lotada, todos cantaram novamente aquela música e começaram a desabafar, exprimir raiva. Até que resolvi parar de tentar entender aquilo tudo. Aprendi pela emoção, porque não tem muita lógica. Agora querem levar para Itacuruba uma usina nuclear que ninguém no Brasil quer. É difícil de compreender.

Por que a opção de não mostrar nenhum rosto no documentário, com vozes somente em “off”?
Ninguém quis aparecer no vídeo. Pensei em reproduzir os depoimentos com atores, mas perderíamos muito. Optei pela linguagem sensorial, por mostrar aquele lugar inundado com galhos de árvores saindo das águas. Parece uma cidade insepulta, como é insepulto esse sentimento e a dor que ninguém fala.

Cenas do curta exploram o ócio e a falta de lazer. São agravantes?
Nas cidades muito pequenas há, naturalmente, poucas ofertas de lazer, o que se intensificou com a transferência da cidade. Nas imagens da Itacuruba antiga, dá para perceber um clima diferente. As pessoas criavam maneiras de se divertir. O rio, por si só, era uma fonte de diversão. Depois da mudança, os moradores receberam por muito tempo uma verba de manutenção temporária, ela veio junto com mudanças de hábito. Quem acordava quando o sol nascia e dormia quando o sol se punha, depois de pescar, plantar, cuidar dos animais, perdeu tudo isso. Passaram a viver como funcionários públicos. A ociosidade tornou os moradores sujeitos passivos. Para ofertar a VMT, precisaria mais tempo e preparo da população pobre, que se viu diante de muito dinheiro. As pessoas têm muita mágoa da Chesf. Elas não viram o desenvolvimento chegar e se sentiram enganadas.

Existe solução para o problema de Itacuruba?
Ela precisa ser buscada. O atendimento à saúde mental não existe nos planos particulares, e no setor público a oferta é completamente deficiente para a enorme demanda. O médico da cidade nos perguntou o que mais ele poderia fazer, pois lá não tem Caps (Centro de Atenção Psicossocial), não tem nenhum serviço de saúde mental. As taxas de suicídio em Itacuruba só são comparáveis com as do Japão. Ainda assim, não há estrutura alguma. O fenômeno existe e está subnotificado no Ministério da Saúde. Se o mal do século é a depressão, temos que aparelhar o estado para uma oferta de tratamento adequada.

Terminado o curta-metragem, como ficou a relação com os moradores?
Deixamos 250 filmes na cidade para um grupo local criar um cineclube e promover exibições e debates. Também estou organizando antologia de filmes pernambucanos para eles, na tentativa de mudar a energia dessas pessoas. Alguns psiquiatras estão interessados em ajudar, oferecer tratamentos. É importante que o documentário circule não somente em festivais, mas seja discutido no âmbito médico e de planejamento urbano. Também vou distribuir cópias em todos os cineclubes de Pernambuco e estou à disposição para agendar grupos de pessoas interessadas em assistir e discutir o filme. (Diário de PE/Imagens: Isabela Cribari/acervo pessoal)

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